O escopo do blog é nutrir no espaço acadêmico e intelectual uma discussão séria e científica sobre a relação umbilical entre o Direito e a Filosofia. Para tanto, devem ser assentados dois pressupostos axiais de nossa proposta: a) a perspectiva pretendida nesta página não é tout court jurídica e in re ipsa filosófica, mas interdisciplinar; b) o método utilizado diferencia-se pela capilaridade bibliográfica, isto é, pela inclinação teórica ampla e variada.


quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

A ferrenha disputa entre o ativismo judicial e a intersubjetividade democrática


1. Introdução

Este artigo irá dedicar-se ao dilema e quiçá aporístico tema da pós-modernidade, senão da sociedade contemporânea, um (in)solúvel paradoxo, isto é, tornar plausível e salutar a tensão entre o protagonismo judicial e a integridade da democracia[1]. Afinal de contas, inúmeras correntes teóricas advogam que é preciso respeitar o sentido original dos textos jurídicos escritos pelos fundadores da pátria ou pelos constituintes originários. Por outro lado, também há os que acreditam existir o que se chama de adaptação social e, consequentemente, a normativo-plasticidade das engrenagens do Direito, conjunto que é inegavelmente visto como uma célula do tecido social com o condão de sofrer adaptações.

Demonstrar-se-á, ressalte-se, que dificilmente se busca adentrar nas teias retóricas de um argumento disseminado em terras brasileiras e no núcleo histórico dos fatos, visto que é mais fácil dizer que se importou um excerto de determinada obra e sic et simpliciter vertê-lo para a língua do reprodutor, não raras vezes, sem o cuidado filológico-semântico-contextual e, principalmente - filosófico. Portanto, encaixar o título da postagem em um quadrante de soluções sem o filtro do contexto, da semântica (uma emanação formal da linguagem que nos forma), do estudo dos signos, da fisiologia histórica que imbuiu algumas das correntes tecidas outrora e hodiernamente e da filosofia é uma operação que só pode ser classificada como apedeutismo[2] ou paralogismo.

Sem desdouro para os que não veem dificuldades na empreitada, em que pese a confusão terminológica que tamanha vã e despreparada odisseia pode provocar. As tempestades de uma viagem sem o devido denodo do capitão (estudante) e dos seus grumetes (livros) são capazes de afundar a embarcação (tradição) no profundo sono que a superficialidade e ojeriza ao conhecimento são capazes de introjetar na realidade. O sorriso melífluo do aplauso da concordância majoritária não pode superar a facúndia de um fundamento fruto da imperecível combinação da lógica e historicidade, ambas caminhantes e companheiras da razão.[3]




[1] Cf. Cass R. Sunstein, Radicals in robes: why extreme right-wing courts are wrong for america, 2005.
[2] Há uma candente passagem de um escrito de Rui Barbosa que demonstra claramente o pecado que comete aquele que tem um escotoma no olho e um bloqueio mental diante das transformações. Cf. Luís Viana Filho, A vida de Rui Barbosa, 11ª ed., 1987, p. 44: “A sinceridade, a razão, o trabalho, o saber não cessam de mudar: não há outra maneira humana de acertar e produzir. Varia a fé, varia a ciência, varia a lei, varia a justiça, varia a moral, varia a própria verdade, varia, nos seus aspectos, a criação mesma; tudo, salvo a intuição de Deus e a noção dos seus divinos mandamentos, tudo varia. Só não variam o obturado, ou o fóssil, o apedeuta, ou o néscio, o maníaco, ou o presumido. (...) Tirante, porém, essas cabeças privilegiadas, tudo no direito é mudar constantemente...” 
[3] Em breve publicarei o texto integral. 

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

O polimorfo discurso na teoria jurídica


A dogmática jurídica não é a mesma de outrora. Se a ciência é uma ramificação gnosiológica embutida de raízes rígidas, fixas ou anatomicamente consistentes, com o Direito não poderia ser diferente. Todavia, nota-se no oxigênio intelectual uma fluidez, incerteza e histeria de conceitos e perda de certos parâmetros.

O ambiente atual é o da celeridade, presteza e velocidade nas soluções. O pragmatismo começa a medrar como um vírus inoculado em um organismo depredado imunologicamente. Assim, vê-se discursos apopléticos e desesperados a favor dos festejados princípios jurídicos. A letra da lei já não desfruta do mesmo valor que antigamente, o que fez com que os textos jurídicos fossem lidos não como repertórios apartados da realidade, mas conectados com a famosa tríade realeana: fato, valor e norma.

Com isso, rompeu-se drasticamente com o paradigma bizantino da exegese bas fond de interpretar o texto legal simplesmente apreendendo o significado dos termos insculpidos em um Código, sem nenhuma relação com os fatos, os valores e as normas em sentido amplo. Ao mesmo tempo, foi assim que uma série de juristas começaram a misturar conceitos e, não raras vezes, confundir o conceito de um instituto ou termo com a sua aplicação. O polimorfismo discursivo e temático virou objeto da constância dos tempos e passou a constituir o pecado capital da teoria jurídica, que não conseguiu encontrar uma segurança metodologicamente infusa. Ao contrário, a quebrou. Em nota conclusiva, assevera Nelson Nery Junior: "Talvez o pecado mais sério da doutrina hodierna seja o de tratar o tema mediante sincretismo, vale dizer, misturando-se as teorias que se utilizam de critérios e parâmetros distintos uns dos outros.”[1]

A situação piora quando qualquer estudioso intenta pesquisar na literatura o que já foi dito e escrito sobre o assunto. Infelizmente, grande parte se assusta pela imensidão da produção doutrinária, desistindo sem pestanejar. Para não transformarmos este texto em uma assertiva retórica, adentremos no campo da distinção entre princípios e regras, sem olvidar, é claro, de pincelar uma situação prática. Costuma-se acentuar que as regras são enunciados descritivos de condutas embebidos de definitividade[2] e os princípios são mandamentos de optimização que são aplicáveis prima facie, consideradas as possibilidades fáticas e jurídicas.[3] Como a interpretação exige a intermediação da linguagem para que prospecção de um sentido se realize efetivamente, só a partir da intelecção do autor com o objeto cognoscente é que se pode falar em normas ou possibilidades de normas. No dizer de Humberto Ávila: "Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado."[4] Quer dizer, podemos metaforicamente afirmar que um bombom lacrado é o direito em estado inercial.

Para que a ordem jurídica acompanhe a fluidez da vida social o jurista precisa dinamizar o próprio Direito. Neste desiderato, cabe ao exegeta retirar lentamente o bombom do seu envoltório para que não estrague a forma dele, seja despedaçando a sua cobertura ou introduzindo involuntariamente a segunda camada do chocolate. Após a retirada de todas as camadas, retirar-se-á o produto de todo o manuseio: o sonho de valsa. A mesma operação ocorre no campo jurídico. No caso das regras, é possível extrair a ideia de que a função da regra é realizar a subsunção da hipótese jurídica atraída pela verificação de que o fato da vida ocorreu. O encaixe do fato com a previsão legal é resumido na aplicação da regra. Por exemplo: existe uma regra constitucional que impede que haja uma re-reeleição para certos cargos políticos.

Assim, aplica-se categoricamente o texto normativo por uma incidência inaudita altera pars. Segundo o insigne Pontes de Miranda: "o que caracteriza a regra jurídica, como lei, é a incidência. O fato, em si-mesmo, não surte eficácia; é preciso que a lei incida sôbre êle, que o faça jurídico: do fato jurídico é que ela dimana."[5] Desta forma, não há espaço, em princípio, para a discussão referente à colisão entre princípios e regras, tendo em vista a hipótese até aqui versada. Destarte, não cabe a um Presidente da República reeleito se candidatar para um terceiro pleito. A candidatura deverá, consequentemente, ser indeferida pela Justiça Eleitoral.

Diferentemente ocorre quando se trata de discorrer a propósito dos princípios. Até porque, sempre se ressalta o aspecto qualitativo e axiológico neles encontradiço, o que reforça a carnavalização, a euforia principialística e a importação acrítica de um arsenal teórico, independentemente de uma filtragem teórico-metodológica. O doutrinarismo ganhou uma forma proteiforme e uma solidez disforme, sem falar que o que parece vigorar é a mera reprodução daquilo que interessa ou corresponde à pretensão daquele que cita uma tese importada. Nesta toada, atrofia-se a alma do reprodutor da tese em cima de um punhado de ideias produzidas por um terceiro que mereceria um estudo analítico e agudo. Reconhecendo a tarefa hercúlea em se estabelecer critérios robustos da diagnose diferencial das duas categorias das normas retrocitadas, convocamos os curiosos para a leitura de nosso próximo post abordando o que se entende por princípio jurídico, o seu significado plúrimo e a sua aplicação assíntota na órbita teórica brasileira.



[1] Nelson Nery Jr., Princípios do processo na Constituição Federal, 10ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 35.
[2] Luís Roberto Barroso, Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo, 2009, p. 207.
[3] Cf. Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, 1994, p. 100.
[4] Humberto Ávila, Teoria dos princípios, 2009, p. 30.
[5] Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, t. I, 3ª ed., 1970, p. 22.